Na luta contra o racismo
Durante as próximas semanas, vocês verão a coluna publicar notas ou textos completos de intelectuais negras da cidade, região e do país inteiro. Quando paramos pra pensar nos casos de violência e atentados contra os negros, e nos chocamos com histórias como a do menino João Pedro [morto aos 14 anos com tiros dentro da própria casa, no Rio de Janeiro], de George Floyd [que não resistiu após ficar mais de 8 minutos no chão, torturado e asfixiado por um policial ajoelhado em seu pescoço, em Minneapolis] e, mais recentemente, do recifense Miguel [o garoto de 5 anos que morreu ao cair das Torres Gêmeas, por negligência da patroa Sarí Corte Real, que não teve o menor cuidado com a criança após mandar a mãe dele passear com o cachorro], não nos resta alternativa: essas pessoas, mortas pelo racismo estrutural e escancarado que foi inventado pelos brancos para exterminar os negros ao longo dos séculos, merecem o nosso silêncio.
E quando falamos em silêncio, não é aquele da omissão, de tentar tapar o sol com a peneira diante de crimes tão absurdos quanto banalizados ao ponto de caírem no esquecimento e se tornarem uma dolorosa estatística. Não! Nos referimos ao silêncio para escutar o que eles, os negros, têm a dizer. De uma vez por todas, basta de roubarmos o lugar de fala dos negros. Já não foi suficiente roubarmos suas vidas, sua paz, interrompermos seus sonhos? Basta de brancos na TV falando sobre racismo. Basta de intelectuais brancos explicando a luta antirracista. Basta de brancos por trás de colunas opinando a respeito do assunto – e, por isso mesmo, esse espaço será ocupado, de forma parcial ou integral, por pensadoras negras.
Tratando-se de uma coluna social, precisamos falar dos problemas sociais, não podemos focar apenas no lado positivo, no glamour e nas trivialidades que a branquitude está acostumada a ler. E, por mais que prezamos pela diversidade em nosso conteúdo, o mínimo que podemos fazer é dar destaque a quem foi historicamente prejudicado pelos nossos privilégios. A primeira convidada é Tamyres Cristiane Cardoso, coordenadora de políticas para mulheres negras da Secretária de Políticas para Mulheres de Caruaru.
Maternidade
“Eu também fui uma criança de seis anos que já se questionou e por um bom tempo não aceitou a cor da própria pele. E hoje, sendo mãe de uma adolescente negra, nesse momento em que o racismo está sendo filmado e escancarado mundo afora, apesar de estar na luta todos os dias, também posso afirmar as minhas dificuldades para mostrar pra minha Sarah que o racismo infelizmente existe, ele vem, ele agride, ele dói muito, causa feridas por vezes difíceis de serem curadas, mas ela já está entendendo que resistir é preciso! Não é fácil ser mãe, é uma das tarefas mais difíceis como costumo dizer, porém ser mãe de criança negra, principalmente no Brasil é duas ou três vezes mais! Como mãe, posso dizer que ela é tudo que tenho e por ela continuarei firme. Como profissional e militante desejo me fortalecer a cada dia para que a voz do negro não seja silenciada e que juntos (porque ninguém faz nada sozinho), possamos sempre promover os nossos irmãos, lutar para de fato sermos iguais como é dito. Sonho o dia em que o racismo vai acabar! Talvez eu ainda não esteja viva para ver, mas peço a Deus que minha geração, meus descendentes descubram uma era sem racismo, sem indiferença e de fato com igualdade”.
O caso Miguel
“A mulher branca gritou: ‘o feminismo é uma luta de todas as mulheres’! A mulher preta acreditou no discurso bonito e comovente da sinhá. Mas não é verdade, minha irmã. A luta é delas. A mulher preta saiu de casa em plena pandemia, pra limpar a casa da sinhá, com filho debaixo do braço, porque não tinha com quem deixar. A sinhá ordenou que a mulher preta, depois de limpar toda a casa grande, fosse passear com o cachorro. A mulher preta, obedeceu. O menino ficou aos cuidados da sinhá, que na verdade, nunca foi capaz de cuidar dos seus, nem da sua casa, acham que ela se preocuparia com o filho da mulher preta?
O menino preto, chora, sentindo a falta da mãe. E como hoje a sinhá não pode mais atirar os filhos das pretas na fogueira quando choram, a mulher branca decidiu abrir a porta e mandar a criança preta de cinco anos atrás da mãe, mulher preta, que trabalhando em plena pandemia, estava na rua com o cachorrinho da sinhá. O menino preto caiu do 9° andar. A sinhá o levou à morte, porque ele chorou. Chorou porque queria a mãe preta, que o levou para o trabalho em plena pandemia, porque não tinha com quem deixar. Eu vou repetir a cor da sinhá. A cor da mãe que foi obrigada a trabalhar em plena pandemia. A cor do menino de cinco anos. Vou repetir pra que vocês entendam que a sinhá branca feminista, não está nem aí para nós. Essa luta, mulher preta, não é sua. A sinhá te quer pra servi-la, pra limpar a casa dela. Passear com os cães dela. E se seu filho preto, precisar minimamente de um cuidado da parte dela, ele que morra”.
Sonhos interrompidos
“Assistir ao Globo Repórter e me deparar com as imagens dos jornalistas negros debatendo racismo, me traz à mente um dos atos racistas que vivenciei ao longo da minha vida. Lembro muito bem o dia em que perguntei a um professor no Ensino Médio o que eu precisava fazer além de gostar de falar, ler e escrever para me tornar uma jornalista, pois aquele era um dos sonhos que eu tinha na minha vida, e recordo claramente quando ele me disse assim: “Em primeiro lugar você precisaria ter aparência, você não tem cara de apresentadora, de repórter, isso não é pra você”. Naquele momento a minha reação não foi nada além de muita dor e angústia, pois além de tudo dois colegas de classe presenciaram e ficaram rindo de mim. Eu corri para o banheiro e fui chorar, e naquele momento eu desistia do curso de jornalismo, eu já era mãe, sozinha, sem dinheiro, sem ninguém. Ergui minha cabeça, comecei a estudar para concursos, e peguei outro sonho que estava guardadinho dentro de mim que era fazer Direito, porque um dia em uma atividade escolar no Ensino Fundamental eu fui advogada em um júri simulado e o meu cliente foi a 2ª Guerra Mundial, e eu pensei naquele momento: ‘se eu defendi uma Guerra, eu tenho capacidade de defender uma pessoa e causas’. Peguei esse sonho, acabei entrando pelo maravilhoso mundo das carreiras jurídicas e no momento certo ocuparei o cargo que almejo por amor, que é a magistratura estadual. Mas ver essas mulheres hoje ocupando um lugar que por muito tempo eu me via nele, me proporciona uma alegria sem medida. Sou grata por elas terem sido resistência, por estarem enfrentando o racismo com tanta força, ética e competência. Não só elas, como aqui na minha cidade Renata Araújo [repórter da TV Jornal], à qual sempre me dirijo dizendo o quanto ela me representa, quando a vejo, me vejo nela. Gratidão mulheres negras jornalistas do Brasil e mundo afora. Eu me realizo em vocês e espero que nenhuma jovem negra precise escutar algo tão destruidor assim”.
Desafios
“Esse Cordel Mulher Negra Luta e Resistência foi escrito em maio de 2018, quando eu ainda começava a dar os primeiros passos na Secretaria de Políticas para Mulheres. Eu não imaginava que ele teria um alcance tão significativo. O melhor de tudo é ouvir das mulheres que elas se sentem representadas pelas palavras nele descritas. Nesses dois anos, muitos são os desafios e conquistas ocupando a Coordenação da Mulher Negra de Caruaru, que desafio meu Deus! Mas o que posso dizer é que, apesar de não ter alcançado ainda todas as mulheres negras da cidade, enquanto aqui eu estiver, continuarei na luta pela garantia dos Direitos Humanos das Mulheres. Pois a dororidade (que é a dor que só as mulheres negras reconhecem) é o meu maior motivo para lutar. E reforço o que sempre externalizo nas minhas falas: hoje eu estou como a Coordenadora, amanhã pode ser você, mulher negra, a próxima Coordenadora de Políticas para Mulheres Negras da Secretaria de Políticas para Mulheres de Caruaru. Pois você tem capacidade!”