Deliciosa história de amizade contada no livro de memórias “Navegação de Cabotagem”, do escritor baiano.
Exibo na casa do Rio Vermelho caótica coleção de arte popular, de certo valor pelo número e procedência e pela qualidade de algumas delas – carta de pescador esquimó gravada em dente de elefante-marinho presente de Eremburg, vaso de opalina com as armas imperiais de Nicolau I, tzar de todas as Rússias, oferta de Sacha Fadeev e, entre as mais belas, um boi, o maior de todos os bois de barro amassado pelas mãos mágicas de Mestre Vitalino de Caruaru, nos primeiros tempos de sua criação artesanal.
Acredite quem quiser, sei que é difícil acreditar, o zebu de Vitalino foi-me dado de regalo por João Condé e eu afirmo que ele estava sóbrio, não tinha febre, saúde perfeita, quando me fez o dom. Um rasgo de loucura desses que levam os indivíduos a atirar dinheiro pela janela. Faz mais de cinquenta anos desse lance incrível, ou seja, há mais de meio século João Condé me roga que lhe restitua o boi, o maior boi de Vitalino, cerâmica sem preço: vale uma fortuna, segundo me diz o incauto ex-proprietário, os olhos marejados de lágrimas, autênticas.
Esse senhor João Condé devia ter-me dado não apenas o boi aqui citado e, sim, toda a sua imensa coleção de peças dos artesãos de Pernambuco, algumas das imagens de santos – possui muitas, nenhuma lhe custou um níquel sequer – e uns quadros do pintor Cícero Dias, das que lhe afana quando passa por Paris, e ainda não estaria pagando o que me deve. Não me refiro aos originais de romances, cartas e textos, de depoimentos escritos especialmente, o material inumerável com que concorri para os seus Arquivos Implacáveis. Refiro-me às belas que chamou aos peitos fazendo-se passar por mim: naqueles tempos, diziam, nós nos parecíamos. Ele namorava e assinava autógrafos como se fosse eu.
-Autógrafos?
-Muitos, nem imaginas…
-Em livros, João?
-Em livros quando elas me trazem os exemplares, senão em pedaços de papel, não estou para gastar dinheiro comprando teus livros. Se ainda fossem do Zé Lins…
Encontrava-me eu na Argentina, exilado, soube que no Rio um gaúcho me buscava, armado de revólver, para matar-me a sangue-frio, eu o teria feito corno com a ajuda da esposa lá dele, turista às ordens em Copacabana, quando os chifres ele os devia a João Condé, namorador.
Por felicidade tratava-se de um gaúcho da fronteira, meio brasileiro, meio argentino, não era de temer-se. Se o chifrudo fosse paraguaio, o conquistador caruaruense estaria hoje morto e enterrado: na lápide sobre o túmulo, gravado a bala, meu nome, pseudônimo de João Condé.
A famosa “Casa do Rio Vermelho”, em Salvador, foi a última morada da família Jorge Amado, hoje transformada num belo memorial. Sempre que visito a capital baiana encontro tempo para rever aquele relicário da cultura brasileira. Recentemente lá estive e, pela primeiríssima vez me deparei com o monumental boi de Vitalino – o mesmo, de tamanho incomum – que fez João Condé marejar os olhos de arrependimento e saudade…